Segunda
O dia amanheceu cinza chumbo carregado da gravidade típica dessa cidade. As segundas são dias naturalmente graves. Mesmo quando o sol se esforça em torná-la mais leve e amena, ainda assim ela é grave, pois não há leveza num recomeço. A segunda é sempre um recomeço. Dia de sentimento de revolta, falha, ou impotência acometendo. Todas as vezes assim porquê hoje é segunda-feira, o dia amanheceu cinza, o sol não apareceu e lá fora cai uma leve neblina.
Arrasto meu corpo até o chuveiro, tomo o primeiro jato de água gelada e o choque térmico faz tudo parecer um pesadelo. O pesadelo matutino semanal das segundas. Tento achar uma brecha por onde as coisas pareçam mais claras e naturais, mas minha inconsciente aptidão para complicar me impede de todo.
Começo a pensar em quanto eu tenho melhorado nessa coisa de terceirizar minhas culpas, minhas expectativas e outros sentimentos mais que me estorvam a paz. Percebo que o processo tem crescido rapidamente e o resultado em geral me agrada. Penso na menina bonita que conheci ontem à noite, na conta de luz que vai vencer e na roupa suja para eu levar à lavanderia. Penso nisso tudo de uma só vez, em síncopes, sem prioridades ou ordem sensata.
Na bagunça do apartamento não acho meu cinto, não sei do meu celular e as frutas apodreceram na fruteira a minha espera. Tomo um copo de leite gelado e sem açúcar. Me corto fazendo a barba, penso com raiva em como é incômodo ter de fazê-la todos os dias e tento lembrar que fato na história da humanidade associou o ato de raspar a cara com uma navalha como sendo uma prova de civilidade.
No prédio da frente uma velha me espia pela janela enquanto me troco. Fico imaginando o cuidado que ela tem para não perder esse momento. Penso em quão reprimida ela deve ser e continuo a me trocar vagarosamente fingindo ignora-la.
Desço o elevador com minha visinha louca que deixa bilhetes na porta. Imagino que ela pode ter um surto e me atacar, mas ela parece muito mais assustada com minha presença, ou com qualquer outra que não seja a dela própria. Percebo como ela é estranha, sigo rua acima ignorando outdoors e todas essas coisas em que só faço hoje, nessa segunda-feira em que o dia amanheceu cinza, o sol não apareceu e lá fora cai uma leve neblina.
Inventado por: Henrique Neto às 18:43 | Link |
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