Minha vida de diagramador
Um raio de sol bate no meu rosto.
- Não fechei a cortina de novo. Já deve ser umas onze e meia. Preciso me levantar logo, tenho que acabar o trabalho.
Rogê, o gato filha da mãe, me olha com seu desprezo habitual.
- Ainda dou um fim nesse gato maldito.
De frente para o espelho, antes de entrar no chuveiro, penso na moça da boate.
- Qual era o nome dela mesmo?
Nao consigo lembrar. Deixou o telefone na cabeceira da cama, olho depois.
Falta coragem para fazer a barba, o dia está frio. Desço no elevador com mais uma velhinha de sapatos vermelhos.
- Caraca, quem nessa vida usa sapatos de crochê, vermelho ainda?
Esse prédio é muito fuleiro. Tem os piores moradores da cidade. Tudo que é puta, traveco, viúva e o mais baixo escalão da sociedade paulistana vive aqui. Não mudou muita coisa desde a época do 69. Avenida São João número 69, o puteiro.
Na padaria o Chico (com sua natural insolência) me serve uma média. Do meu lado senta uma puta acabada, parece que teve uma noite longa. As marcas de cigarro no braço dão o tom das peripércias feitas pelos meus conterrâneo. Nordestino e puta em São Paulo, tão clichê quanto a Ipiranga com a São João.
Hoje não. Nem vem que eu não quero ouvir história da família pobre do interior de Minas, da filha criada pela avó, do pai que batia na mãe e nela e outras desgraças adjacentes. Sempre essa mesma história com um tom mentiroso. Sempre o mesmo perfumezinho vagabundo misturado ao suor dos bêbados.
Em casa, correndo contra o relógio, meu 'computador mais caro do mundo' decide travar. Já não aguento mais falar com a assistência técnica. Vou arrancar uma grana dessa cambada.
Acendo outro cigarro, com esse já deve ser o décimo ou décimo segundo, nem sei. Preciso parar de fumar. Preciso fazer esportes e todas essas coisas que minha mãe fala.
Da última vez veio aqui e me humilhou. Falou que tô virando um traste, que o apartamento estava imundo, fedorento, que a localização era horrível e mi, mi, mi, mi, mi...
- Não vou mudar daqui.
Reclamou que subiu no elevador com uma traveca toda montada, que a cada hora tem uma moça diferente aqui, que a casa vive cheia de gente estranha e um monte de outras coisas que o porteiro tinha contado. Maldito Zé! Vou cortar os cigarros dele.
Mexeu no meu celular enquanto eu tomava banho. Nem esperou eu sair do chuveiro para me perguntar quem era Flávia, Ana, Mariana, Paula, Cristina, Priscila, Juliana, Marcela, (...), (...), (...). Me chamou de cachorro, fingi na hora rir.
- O que dizer à mãe numa situação dessas?
Quer que eu faça um exame de HIV ainda essa semana. Ameaçou dizendo que vai ter uma 'conversa séria' com meu pai sobre a vida que eu estou tendo. A mãe sempre arruma pretextos para ver meu pai. Eu sou o mais usado deles, foi sempre assim, desde a separação.
Foi até à farmácia, subiu com uma caixa de camisinhas, largou em cima da mesa e berrou:
- Faça-me o favor de usar. Faça-me o favor, viu!
Perguntou porquê eu nunca contei da tatuagem na barriga.
Numa cena teatral, chorava dizendo que eu não era o filho que ela tinha criado. Me diz isso sempre que quer me deixar puto.
De toalha, no meio da sala, pedindo pr'ela parar com o cenão, toca a campainha.
Era a Paula. Duas malas, sorriso de orelha à arelha, dizendo que estava grávida e tinha 'decidido' vir morar aqui comigo.
PS.: A parte do gato não é verídica.
Inventado por: Henrique Neto às 20:00 | Link |
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