Das coisas tomadas por Deus na mão grande
- Você me disse (quando tudo parecia não ter mais sentido nem graça) pra eu tentar, e se não desse pra tentar uma vez mais, e se ainda assim não desse, eu poderia voltar pra casa feliz. Por ter tentado e por ainda estar vivo.
- Fui eu quem te disse isso, assim bonito desse jeito? Nem lembrava...
- Foi. Daí segui esse seu conselho. Fui lá e tentei um dia, dois, minha cabeça doía, tinha vontade de chorar, mas continuei e quando -- muito por insistência -- percebi que ia conseguir, vi que era bem simples, do jeito que você tinha dito.
- É que era preciso continuar vivendo apesar daquela coisa toda. A gente não tinha outra opção.
- Eu penso que nem existiu isso, na verdade não existiu para mim. De manhã eu estava jogando vídeo game, flash!, depois a gente almoçou, flash!, escuro, flash!, hospital, flash!, daí eu renasci, flash!, reaprendi a falar, flash! e todo mundo chorava quando me via. Não existiu.
- Já eu fiquei pensando em como isso tudo carecia de realidade. Nem parecia um fato. Era um tumulto grande e em seguida o cotidiano capenga, mas eu pensava “isso logo passa e tudo vai voltar a ser como era”. Não voltou até hoje.
- Você ainda espera?
- Racionalmente eu digo “não”, mas é mentira. Foi a maneira que encontrei para dissimular, segurar essa onda que queria me afogar. Daí eu prometo que não vou chorar para não ser egoísta, mas nem sempre consigo.
- Comigo é igual.
- O quê é que fica quando se vai embora, heim? O nome, uma imagem que vai se dissipando ano a ano ou só uns poucos objetos pessoais deixados?
- A idéia do que se era, talvez.
- Eu às vezes penso que Deus foi muito filho da puta com você, com ela e com a gente. Deve ser por isso que eu desisti de saber se ele existe ou não. Se ele me culpa pelo pecado original eu não o perdôo pela punhalada.
- Mas e se Deus resolver se vingar?
- Não vai valer a pena, ele não vai ter muito mais o que tomar.
Inventado por: Henrique Neto às 23:19 | Link |
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