Catinga
Havia três dias que alguém tinha notado. Foi dona Carmina, uma senhora viúva que morava em frente a igreja. Àquele cheiro não parecia com nada que os moradores conseguissem definir, sentia-se apenas uma fragrância que incomodava o nariz e fazia doer a boca do estômago.
O assuntou rapidamente dominou as conversas. Nas escolas, casas, na bodega de Bastião Coutinho ou nas rodas de sueca, era só do que se falava.
No quinto dia, na missa do domingo, o padre sugeriu que se fizesse uma busca em todo o leito do rio, podia ser que houvesse animal morto ou coisa que o valha. Pediu também que contassem os parentes para se certificarem de que não havia ninguém desaparecido. Criação ou gente, nada foi encontrado.
A pior hora era a do sol do meio-dia, o cheiro se tornava tão forte que crianças choravam em desatino. O povo estava assustado apesar das frustradas tentativas de manter o normal. No sábado seguinte, as quase dez barracas da feira estavam em frente ao mercado, mas não havia pessoa se quer para comprar, o cheiro tinha provocado uma onda de vômito generalizada, os poucos que ainda se aventuravam comer algo, o fazia de maneira frugal.
No décimo quarto dia o cheiro –até então indefinido– virou uma catinga da gota, e como um castigo redobrado, a cidade foi atacada por uma peste de moscas. O prefeito decretou estado de calamidade pública e se precipitou em direção à capital, em busca de ajuda do governo da província. Os mais abastados resolveram veranear antes da hora fugindo de tamanho mal-estar.
Missas foram rezadas em oferenda aos mortos na tentativa de se eliminar àquele inconveniente, o padre benzeu com água benta as quase duzentas casas da cidade, calçadas foram lavadas e re-lavadas, móveis e cômodos há muito esquecidos foram devassados em busca da razão de tanto fedor, mas nenhuma dessas medidas surtiram efeito.
O prefeito –com lenço em punho tapando o nariz– ofereceu três contos de réis para quem descobrisse de onde vinha àquele cheiro, que consumia a paz e o humor da cidade. Uns corajosos montaram a cavalo e percorreram cercados em busca de tal mistério. Os antigos já falavam em final dos tempos, os mais fervorosos diziam ser castigo e em meio a tantas elucubrações, a cidade em peso já não conseguia mais dormir com àquele cheiro.
Completo o primeiro ano da desafortunada situação, a população já tinha se tornado cronicamente insone e se perguntava 'o que tinha feito de tão mal para receber tal castigo'. Quem pôde foi-se embora para outras paragens. Aos mais desvalidos, restou apenas a resignação para poderem viver num lugar com catinga sem igual.
Pedro e Lucas ouviam de olhos estalados a avó contar essa história inverossímil, e riam quando ela, com o olhar fixo na porta da rua, lhes perguntava se eles também não sentiam o cheiro que vinha de fora.
Inventado por: Henrique Neto às 21:09 | Link |
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