Da memória que meu corpo tem d’Ella
Ella, elegante em seus taillers franceses e na sua maneira glamourosa de atravessar a rua, reclama do trabalho, do seu chefe, das amigas que se foram e se pergunta até quando suportará esse peso todo. Ella já não vem com a mesma freqüência receber os dengos que eu lhe sorvo, com devoção de menino trancado no banheiro às voltas com a descoberta dos prazeres mundanos. Em outros tempos, Ella exigia janelas escancaradas de par em par e vizinhos como testemunhas de nossas viagens insólitas na arte do bem-viver. Ella gostava de ser visitada antes de dormir, no amanhecer e/ou em todo lugar e hora em que houvesse um canto para a gente se aninhar. Ella é do tipo perfeito, daquelas que pregam a filosofia do: já-que-não-tem-nada-para-fazer-façamos. Era na hora maior onde Ella perdia a linha, esnobava os bons costumes, cuspia na decência e acreditava que vizinhos foram feitos para serem incomodados, ainda que fosse alta a noite. Mulheres com esse senso de urgência, são fundamentais para o bom andamento da humanidade. São elas os verdadeiros pilares da economia. Ella - que entre uivos, unhadas e mordidas fundamentais para meu corpo, se descabela e bagunça a noite dessa cidade - sai para a rua como uma santa aparelhada de óculos e batom, desfila lânguida entre carros, moto-boys, viúvas e cachorros cagões, saltando aos olhos de quem se cansa de olhar o cinza chumbo da paisagem, o hit desses dias de sol. Ella é meu private espetáculo. Nos dias em que não vem, as doces pássaras que pousam em minha alcova servem apenas para reforçar uma antiga desconfiança: a de que sem Ella, meus dias são em branco e preto.
Inventado por: Henrique Neto às 10:10 | Link |
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