Mini certezas
No dia em que Camilla Delvechio deixou o bilhete derradeiro em minha casa, abandonei um pacote de mini-convicções. Vendi o papa-gaio, paguei a ultima parcela do IPTU, comprei mexerica na feira e fui visitar minha avó que mora lá na Vila Brasilândia. Tudo isso (claro!) para mostrar que eu estava bem e nada havia mudado.
Por que um homem de brio e barba bem escanhoada, jamais admite uma perda. Menos ainda quando tem um ser de cara raspada na outra ponta da história. Os pragmáticos darão a isso o nome de 'chifre', ja eu prefiro 'perda' para a coisa não parecer tão rude. Contudo, para além da questão estética, Camilla Delvechio foi embora para outras paragens, e a essa hora arruma seus parangolés na gaveta de outrem.
Camilla Delvechio era meu norte e apesar de não ser chegada nas artes da cozinha, tinha um incrível senso estético na escolha das estampas de minhas cuecas de seda (sim, cara radiouvinte, a estampa da cueca diz muito de seu dono). Possuía também, um jeito muito seu de fazer cálculos, que logo foi apurado com requintes que estavam mais para o circense que para o cartesiano; seu humor matinal beirava o inverossímil e a forma oblíqüa como dizia 'obsoleto', me fazia rir a cada pronúncia.
Numa mesma semana, Camilla se foi junto com todas as minhas economias. Mais desgraça que essas, só se eu batesse o carro ou recebesse uns parentes do interior que viessem passar férias em minha casa. O mundo anda mesmo complicado, já me dizia àquele senhor que conserta fogões. 'Daqui à pouco serão os postes quem mijarão nos cachorros'. O desalento me dava impulso para desenvolver minha verve de filósofo de boteco.
Saí de casa sem muitas certezas e fui caminhar na Paulista. Somente depois de ter comprado um maço de cigarros, é que me dei conta que não fumava. Desviando de mendigos, bicicletas, cachorros cagões e das lembranças de Camilla Delvechio, finalmente cheguei à Consolação. Lá me senti mais seguro e vi que nem tudo estava perdido, pois apesar de tantos ais, na fachada da livraria Belas Artes ainda se podia ler em letras garrafais: 'aberta todos os dias do ano'.
Inventado por: Henrique Neto às 21:20 | Link |
|